Em julho de 2020, diante dos efeitos da suspensão das aulas presenciais, em função da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), as atividades remotas já eram uma prática em grande parte do país e se iniciava o debate sobre a reabertura das escolas. Redes de ensino, gestoras e gestores, professoras e professores ainda buscavam encontrar caminhos para garantir as condições de participação de alunas e alunos, visto que, até então, o país não apresentava orientações que atendessem a diversidade de realidades em âmbito nacional.
Estudos já apontavam os desafios em relação à educação escolar durante a pandemia, mas eram escassos os dados produzidos sobre o público-alvo da educação especial (alunas e alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação), apesar de o cenário indicar que as barreiras e desigualdades poderiam ser agravadas.
A pesquisa “Inclusão escolar em tempos de pandemia” é desenvolvida nesse contexto por meio de uma parceria entre a FCC (Fundação Carlos Chagas), a UFABC (Universidade Federal do ABC), a UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e a USP (Universidade de São Paulo), com o objetivo de identificar os desafios enfrentados pelas professoras e professores da educação básica, para assegurar o acesso e a participação desse alunado, assim como as estratégias adotadas para garantir o direito à educação especial na perspectiva da educação inclusiva, durante a suspensão das aulas presenciais.
O grupo assumiu o compromisso com a viabilização de um questionário acessível recorrendo à plataforma eletrônica (Survey Monkey), com o intuito de garantir conforto e usabilidade aos participantes. O conteúdo foi integralmente traduzido para a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e submetido à pré-testagem por pessoas surdas e uma surdocega. Também contribuíram com essa etapa de pré-testagem professores cegos usuários de leitores de tela; pessoas com baixa visão, no que se refere ao contraste - cor de fundo e tipo de fonte e, também professoras com deficiência física, sendo uma delas usuária de tecnologia de rastreamento facial.
Os aspectos necessários para a garantia de um ambiente acessível foram pensados e estiveram presentes não apenas para os respondentes da pesquisa, dentre os quais 60 se declararam pessoas com deficiência, mas desde a concepção deste projeto, pois um dos pesquisadores do grupo é pessoa com deficiência por baixa visão e, nesse sentido, os encontros virtuais, textos, planilhas, procedimentos de análise e outras ações vêm sendo organizados e adaptados de modo a garantir a sua plena participação.
Ressaltamos a importância de pesquisas que considerem as diferentes características de seu público, permitindo que todas e todos possam efetivamente participar e apresentar suas contribuições.
Professoras e professores da educação básica receberam, pelas redes sociais, o convite para responder à pesquisa. Contudo, o acesso ao questionário completo foi disponibilizado apenas a quem informou estar atuando com alunas e alunos público-alvo da educação especial em 2020.
Dos 3.258 docentes que acessaram o questionário, 1.594 confirmaram a condição necessária para participar da pesquisa, que alcançou todas as unidades federativas do Brasil. Foram identificados quatro grupos de respondentes, com base na atuação docente: classe comum com alunos público-alvo da educação especial (67,5%); atendimento educacional especializado (AEE) (25,4%); escola ou classe bilíngue para surdos (2,4%); e escola ou classe especial (4,7%).
Neste informe, para fins de apresentação dos resultados, considerando que a maioria dos respondentes são professoras e professores da classe comum, os três outros grupos foram agregados na denominação "AEE e serviços especializados", totalizando 32,5% dos participantes.
Expressamos sinceros agradecimentos a todas e todos que colaboraram com esta pesquisa.
1.594 docentes que atuam com alunas e alunos público-alvo da educação especial
Cor/raça
Branca – 61,6%
Preta – 10,4%
Amarela – 1,4%
Parda – 26,4%
Indígena – 0,2%
Pessoa com deficiência – 3,7%
Em relação à rede de ensino, 93% dos respondentes atuam nas redes públicas (municipal, estadual ou federal) e 7% na rede privada. Docentes de todas as etapas/modalidades de ensino participaram da pesquisa e observa-se maior atuação no AEE e serviços especializados no ensino fundamental (EF) e na educação de jovens e adultos (EJA).
Do total de respondentes, 7,3% relataram que, até julho de 2020, a rede/escola ainda não havia se organizado para o ensino remoto. Para os 92,7% que informaram estar realizando atividades não presenciais, as estratégias mais utilizadas, tanto na classe comum quanto no AEE e serviços especializados, foram: “material impresso”; seguido de “aulas gravadas pelo professor” e “aulas ao vivo (on-line)”.
Nas redes de ensino e/ou escolas que trabalharam com material impresso como estratégia para o ensino remoto, foram tomadas as seguintes providências, no que se refere à acessibilidade:
Sobre acessibilidade nas aulas remotas, mais de 40% dos respondentes indicaram a opção “não se aplica”, possivelmente por não haver aulas on-line, gravadas, via rádio ou TV, ou quando a aluna ou o aluno não precisa desses recursos indicados. Mais de 20% das professoras e professores do AEE e serviços especializados indicaram que não foram providenciados os recursos de acessibilidade para esses tipos de aulas; e, na classe comum, esse percentual se aproxima de 30%.
A maioria das professoras e professores, tanto da classe comum quanto do AEE e serviços especializados, sente-se apoiada pela rede/escola para trabalhar com o público-alvo da educação especial durante o período de suspensão das aulas presenciais. A definição de processos avaliativos desse alunado aparece com o menor índice de apoio, embora mais de 50% de ambos os grupos sintam-se apoiados.
Apoio da Rede/Escola | Classe Comum | AEE e serviços especializados* |
---|---|---|
Planejar as atividades | 71,4% | 81,3% |
Desenvolver materiais acessíveis | 62,0% | 73,1% |
Definir processos avaliativos | 54,7% | 61,1% |
Orientar as famílias em relação às atividades propostas | 70,9% | 85,3% |
Contatar os demais professores que atuam com o aluno | 68,7% | 81,5% |
Contatar os demais profissionais que atendem o aluno | 56,2% | 62,2% |
Em relação ao currículo proposto pela rede/escola, nota-se que o desenvolvimento de currículo adaptado aparece como a principal ação, tanto na classe comum quanto no AEE e serviços especializados. A segunda alternativa mais indicada pelos docentes da classe comum foi “manter o currículo proposto, assegurando a acessibilidade”. As professoras e professores do AEE e serviços especializados destacam a elaboração de novo plano de desenvolvimento individual.
As “atividades on-line” representam a principal alteração na rotina docente no contexto da pandemia, tanto na classe comum quanto no AEE e serviços especializados. O “preparo de materiais acessíveis e envio para a residência dos alunos”, assim como o “envio de sugestões de atividades para que os familiares realizem com os alunos”, já eram práticas comuns para quase metade dos participantes, embora tenham sido iniciadas para mais de 30% na classe comum e para mais de 40% no AEE e serviços especializados.
Segundo os participantes, aumentou “a atenção da gestão escolar” em relação ao público-alvo da educação especial, assim como a “relação família-escola” e a “valorização do professor pela família”. Para mais de 40% dos respondentes, a aprendizagem desse alunado diminuiu, e cerca de um terço dos docentes não soube informar.
“Trabalhar com esse grupo a distância” e “estimular a participação deles no grupo” foram, respectivamente, as duas dificuldades mais indicadas tanto pelos docentes de classe comum quanto do AEE e serviços especializados. A menor dificuldade para ambos os grupos foi “desconhecer ou ter pouco domínio dos recursos de acessibilidade das plataformas on-line”.
Dificuldades enfrentadas pelos docentes para atuar com o público-alvo da educação especial | Classe Comum | AEE e Serviços especializados* |
---|---|---|
Trabalhar com esse grupo a distância | 64,8% | 64,0% |
Estimular a participação deles no grupo | 51,6% | 47,6% |
Promover atividades para que todos possam participar | 44,9% | 41,8% |
Atender as especificidades desses alunos | 48,1% | 42,0% |
O contato com os alunos e/ou familiares | 43,2% | 42,2% |
O trabalho conjunto entre o docente da classe comum e o docente da educação especial | 30,8% | 45,0%** |
Desconhecer ou ter pouco domínio dos recursos de acessibilidade das plataformas on-line. | 24,9% | 19,4% |
Para mais de 70% das professoras e professores, a “alteração da rotina para o aluno (realizar atividades da escola em casa)” se apresenta como a principal barreira a ser enfrentada pelas alunas e alunos público-alvo da educação especial. A “falta de mediadoras para realização das tarefas” e o “acesso à internet” foram, respectivamente, as outras duas barreiras mais indicadas pelos docentes da classe comum. Para as professoras e professores do AEE e serviços especializados, o acesso à internet e a falta de equipamentos (celular, computador, notebook, tablet) aparecem como as outras duas barreiras mais difíceis de serem transpostas por suas alunas e alunos.
Principais barreiras enfrentadas pelas alunas e alunos | Classe Comum | AEE e serviços especializados* |
---|---|---|
Alteração de rotina para o aluno (realizar atividades da escola em casa) | 72,2% | 70,9% |
Falta de mediadores para realização das tarefas | 56,6% | 54,1% |
Acesso à internet | 53,2% | 67,7% |
Falta de equipamentos (celular, computador, notebook, tablet) | 49,9% | 65,7% |
Falta de recursos de tecnologia assistiva | 43,1% | 41,7% |
Ambiente inadequado para estudo | 38,5% | 45,3% |
Material impresso fornecido não está acessível | 13.8% | 13.8% |
Ausência de intérprete/tradução em Libras | 7,8% | 7.2% |
Os respondentes informaram com quantas alunas e alunos público-alvo da educação especial atuam na escola, e, desse grupo, quantos estavam participando com regularidade das atividades propostas. Na classe comum, 20% não estão participando de nenhuma atividade e um terço participam com regularidade. Os docentes do AEE e serviços especializados informaram que 5,3% desse alunado não estão participando das atividades; a maioria indicou que 50% ou mais têm participado das atividades com regularidade.
No momento do lançamento do questionário on-line, o debate acerca de um possível retorno às aulas estava latente, em especial sobre o público-alvo da educação especial. Dentre as alternativas propostas, aproximadamente 80% das professoras e professores assinalaram concordar com a manutenção das aulas remotas em 2020, seguida da possibilidade de rodízio entre as alunas e alunos para evitar aglomerações. Alternar aulas remotas com aulas presenciais apareceu como a terceira opção mais indicada. Nas alternativas que diferenciavam o procedimento a ser adotado para o público-alvo da educação especial, há uma tendência, entre docentes do AEE e serviços especializados (52,0%), de concordarem que este seja o último a retornar.
Alternativas para o retorno às aulas | Classe Comum | AEE e serviços especializados* |
---|---|---|
Rodízio de alunos para evitar aglomerações | 73,7% | 78,2% |
Rodízio de alunos, priorizando o retorno do público-alvo da educação especial | 41,2% | 44,3% |
Rodízio de alunos, deixando o público-alvo da educação especial como os últimos a retornarem | 38,8% | 52,0% |
Manutenção de aulas remotas em 2020 | 82,2% | 79,9% |
Alternar aulas remotas com aulas presenciais | 55,3% | 58,9% |
Cancelamento do ano letivo apenas para o público-alvo da educação especial | 12,7% | 13,7% |
O questionário on-line permitia que as professoras e professores comentassem suas respostas sobre o ensino remoto e suas práticas no contexto da pandemia e de suspensão das aulas presenciais.
Para a realização das atividades remotas, os recursos e estratégias mais mencionados foram: WhatsApp, Google (Classroom; Meet, Drive), Facebook, Zoom, Teams, Moodle, sites das secretarias de educação ou das escolas, contatos telefônicos e e-mail.
A produção de vídeos com orientações para as famílias acompanharem e/ou auxiliarem na realização das atividades, reforçando a importância do seu apoio também nesse momento, foi a estratégia mais citada.
Nas redes ou escolas que até julho não tinham iniciado oficialmente o ensino remoto, os docentes relatam os esforços para manter a comunicação com suas alunas, alunos e responsáveis, periodicamente, seja por meio de vídeos, ligações telefônicas e/ou outras estratégias.
Outras atividades com foco em manter o contato foram realizadas, dentre elas: compartilhamento de jogos, brincadeiras, contação de histórias e outras interações individuais ou em grupos, por meio das redes sociais, sendo as mais citadas o WhatsApp e o Facebook. Professoras e professores mostraram grande preocupação com o aspecto emocional de suas alunas e alunos, assim como a importância de conhecer mais sobre a realidade de cada um e de suas famílias.
Destaca-se a preocupação com quem não tem acesso à internet, e com aqueles que não podem retirar o material na escola. Nesses casos, há relatos de docentes que levavam os materiais adaptados às residências.
É importante ressaltar o esforço com a produção de materiais individualizados, considerando as especificidades de cada discente.
Por fim, a pesquisa revela um grande empenho dos docentes em manter o vínculo com suas alunas e alunos.
Esperamos que esta pesquisa contribua para a reflexão do contexto escolar inclusivo em tempos de pandemia, em relação às alunas e alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, e que essa experiência e aprendizados sejam potencializadores da melhoria da qualidade de ensino em tempos futuros.
Agradecemos a participação de todas e todos que colaboraram compartilhando suas experiências e práticas desenvolvidas nesse momento tão complexo e desafiador.
OBJETIVO DO QUESTIONÁRIO: Identificar os desafios e as estratégias propostas pelas escolas e utilizadas pelas professoras e professores com vistas a garantir o direito das alunas e dos alunos público-alvo da educação especial à educação na perspectiva inclusiva durante o período de suspensão das aulas presenciais.
RESPONDENTES: 1.594 professoras e professores de todas as 27 unidades da Federação.
PERÍODO DE COLETA: 10 a 27 de julho de 2020.
METODOLOGIA: Amostra não probabilística, por conveniência. Foi realizada testagem piloto do conteúdo do questionário, da tradução em Libras e das condições de acessibilidade.
PARECER COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA: Parecer nº 4.040.480 - CAEE nº 31746620.0.0000.5594.
QUESTIONÁRIO: 26 perguntas fechadas e 3 abertas.
COLETA DE DADOS: Plataforma Survey Monkey.
PESQUISADORES: Adriana Pagaime (FCC), Amélia Abreu Artes (FCC), Douglas Christian Ferrari de Melo (UFES), Kate Mamhy Oliveira Kumada (UFABC), Rosângela Gavioli Prieto (USP) e Silvana Lucena dos Santos Drago (USP).
INTÉRPRETES DE LIBRAS: Lara Gomes Silva (UFABC) e Marcos Henrique Assunção Ramos (UFABC).
AUDIODESCRIÇÃO: Ver com palavras.
ESTATÍSTICA: Raquel Valle (FCC).
PRODUÇÃO EDITORIAL, PROJETO GRÁFICO E ACESSIBILIDADE DIGITAL: Adriana Pagaime (FCC), Marcus Vinicius dos Santos Souza (FCC) e Mario Luiz Veiga Pirani (FCC).
REVISÃO: Adélia M. Mariano Ferreira (FCC) e Gabriella Fernandes Rampinelli (FCC).